Eu odeio frases feitas, lugar-comum, chavão e expressões batidas. Dizer que a internet promoveu uma grande revolução na forma como nos comunicamos é, com certeza, um lugar mais do que comum. E que tudo na vida pode ser usado para o bem (e como a internet fez bem para os jornalistas, por exemplo) e para o mal também é outra expressão mais que batida.
Mas é impossível não pensar nisso quando a gente sente na pele (outro chavão) os efeitos do uso indevido da rede por profissionais com pouca ou nenhuma ética. Recentemente, perdemos uma pessoa de nossa família, filho de uma das pessoas mais queridas do meu convívio, num acidente em uma rodovia no oeste catarinense.
A distância, a falta de informações, e a profissão de jornalista me levaram a procurar na internet tudo o que poderia ter sido noticiado sobre o acidente. No começo, apenas uma nota que se repetia indefinidamente em cada site, dizendo o nome completo dos envolvidos, o local do acidente e o número de vítimas fatais. No dia seguinte ao acontecido, fotos estampavam os principais sites jornalísticos da região e outros que fazem apenas cobertura deste tipo de notícia. A maioria das fotos fez o seu papel jornalístico: registrou o ocorrido, o estado dos veículos envolvidos, a forma como aconteceu o acidente, deixando bem claro o quanto o a colisão tinha sido grave e por que motivo os três envolvidos vieram a óbito, como se diz no jargão policial.
Até aí, tudo bem, todos cumprindo o seu papel. Mas então, outras fotos vieram e desta vez, por um momento, senti vergonha de ver tudo aquilo, senti um constrangimento imenso de fazer parte do mesmo grupo “profissional” destas pessoas que colocam sem pudor as fotos das vítimas de uma forma que tais imagens não saiam nunca mais de nossas memórias.
Quando vi a fotografia de uma das vítimas, caída à beira da estrada, impossível não lembrar que aquela pessoa - que na imagem mais parecia mais um boneco estranho com partes retorcidas - foi um dia um jovem alegre, iniciando uma carreira, com uma família feliz e muito ainda a viver. Impossível não lembrar também seu aniversário de um ano, quando era um dos bebês mais lindos que já tive oportunidade de conhecer, ou quando ele, criança, segurava minha mão para atravessar uma rua movimentada. Aquela pessoa ferida e sem vida, divulgada de forma grotesca para todo país, tem um pai e uma mãe que agora estão dilacerados pela dor; um irmão que teve que ser mais forte que tudo, engolir seu sofrimento para resolver situações para as que ninguém nos preparou; tem familiares que torceram por cada etapa de sua vida e também sofrem; tem amigos que ainda não aceitam o fato de uma vida acabar desta maneira.
Então eu me pergunto se, depois de alguns dias, talvez movidos pelo mesmo interesse de saber mais sobre o acidente, estes mesmos pais, este irmão, estes familiares e amigos não irão buscar notícias na internet e se deparar com tal demonstração de desrespeito pela vida humana e pelos sentimentos daqueles que ficaram.
Ironicamente, as fotos foram cedidas aos sites por quem, legalmente, deveria nos proteger, inclusive à nossa imagem. “Imagens cedias pela Polícia Rodoviária Federal”, é o que está registrado nos sites. Como profissional da área, sei que é obrigação da Polícia registrar todos os detalhes de um acidente, mesmo porque tais fotos irão inclusive elucidar os motivos que levaram ao acidente. Sei que é do interesse jornalístico registrar tal ocorrência. Mas me pergunto o que leva as autoridades policiais a cederem todas as fotos, inclusive aquelas que mostram o estado deplorável dos corpos após o acidente. Qual é o interesse de publicidade de tais fotos? Qual é o interesse jornalístico delas? E ainda há a questão de que as fotos foram feitas com equipamento e profissionais pagos pelos cofres públicos, cujo trabalho está sendo literalmente vendido em páginas da internet por todo país, porque quem as divulga, ganha em espaço publicitário, que é cada vez maior quanto mais se comprova sua capacidade de angariar acessos aos endereços eletrônicos.
Você deve estar pensando, assim como eu já o fiz, que a família deveria exigir a retirada do material da rede. Ou então processar os responsáveis pelo uso indevido da imagem, pedindo indenização por danos morais. Mas isso provavelmente nunca vai acontecer, porque no momento, a dor e saudades são tão grandes que tudo isso ainda não chegou ao seu conhecimento e, quando chegar, já vai ser notícia velha. E é contando com isso, com o sofrimento alheio, com a anestesia provocada pela dor que essas pessoas ganham dinheiro, popularidade e “audiência” em cima da tragédia alheia.
Quando se fala na imprensa marrom, na imprensa sensacionalista, costuma-se a brincar que, se espremermos o jornal, ele sai sangue. Na web também é assim. Eu apenas não posso me calar e deixar de registrar minha indignação contra o desrepeito que nos envergonha, que nos fere e que continua navegando livre pela dificuldade de punir os responsáveis, seja por falta de legislação, seja por falta de interesse daqueles cujo deve é coibir tal desrespeito. Como jornalista, faço minha parte, não calando meu protesto.